Olhe, veja o que sobrou de mim. Não, não lamente por isso, não suportarei
mais essa dor, se uma lágrima sua cair, seria como um sopro final. Só me
assista pelo vidro, não segure minha mão, não quero que as sinta frias, quero
que se lembre de mim como aquela garota que se perfumava e saia de casa ansiosa
pra te ver, meu corpo quente no seu, e se enrolava em teus braços, aquela que
cantava suas músicas prediletas, que fazia palhaçadas sem sentido só pra te
fazer dar a risada mais gostosa de ouvir, que te abraçou forte e te disse
palavras de conforto quando você perdeu seus pais naquele acidente de carro há
11 anos. A garota que torceu pra você passar no vestibular, e te disse pra não
desistir caso perdesse na prova. Mas você não perdeu, passou até em primeiro
lugar, e teu sorriso naquele dia foi minha recompensa, e o beijo que me deu
quando chegou a casa dando a notícia, foram um dos melhores que já tinha me
dado.
Lembra amor, daquele dia em que você segurou-me pelos braços e me ensinou a
patinar na pista de gelo? Eu levei um tombo e trouxe você comigo até o chão e
ali rolamos a dar risada. Ah, teve aquela noite de chuva forte que eu fiquei
com medo dos trovões altos e você abriu a porta do quarto devagarzinho no
escuro só pra me assustar, e eu que nem uma boba achando que fosse assombração
enquanto você se divertia com minha cara de medrosa.
Sabe aquele dia que escondi a chave do carro? Foi medo de você sair de casa
e acontecer algo de ruim na estrada, afinal, fazia muita neblina e as notícias
na TV não eram nada boas, sabia que você era teimoso e não levava muito a sério
essas coisas. Eu sempre tive medo de te perder, de por algum incidente você
partir pra outro mundo, e agora veja que ironia, é você que me perde, nós nos
perdemos meu amor. Não está sendo fácil pra mim te ver e saber que essa é a tua
última aparição perante os meus olhos, quero que saiba que mesmo em outro
lugar, todas as noites ao deitar-se, eu sempre estarei sentada na cabeceira da
sua cama vigiando teu sono e protegendo os teus sonhos, afastando os pesadelos.
É cada vez menos visível a tua imagem agora, meus olhos estão turvos sei lá,
nunca senti isso antes... Mas não se preocupe, não fique nervoso, tem alguém
aqui do meu lado, está todo vestido de branco, deve ser algum médico novato,
você não está vendo?
Amor vai ficar tudo bem! Conheço sua força, até mais do que você próprio, eu
que o diga hein? Lembrei daquela viagem que fizemos para a fazenda dos seus
parentes e tinha um tronco de uma árvore enorme caído na estrada e você foi lá,
sozinho, e removeu pra poder passar com o carro enquanto eu lixava
cuidadosamente as minhas unhas que haviam sido quebradas apenas por que eu quis
dar uma de espertinha e tentei consertar o lustre da sala sem a sua ajuda e me
desequilibrei da cadeira bem na hora em que você ia chegando do trabalho
cansado e deu tempo de você me aparar com firmeza evitando um machucado. Nem
tinha feito o almoço ainda e você disse que tava tudo bem, que ia pedir uma
pizza, então fizemos uma limonada, seu refresco favorito, e você terminou o
conserto enquanto eu dava as ordens.
E quando foi mais a noite, te achei meio abatido, te dei um banho morno e te
levei direto pra cama, logo pegou no sono e eu fiquei ali por horas, te
olhando, der repente comecei a me lembrar do nosso primeiro encontro, éramos
tão tímidos não era mesmo? O pessoal da faculdade percebeu que agente se
gostava e resolveram aprontar uma trama com agente, colocando, propositalmente,
aqueles livros de matemática na minha mochila, só pra quando você os procurar
achá-los comigo e agente discutir no meio do pessoal, enquanto eles gritavam:
- "Beija! Beija!" (risos)
E foi assim, nosso primeiro beijo meio revoltado, mas cheio de paixão, e ai
de nós se não fossem esses benditos livros de matemática, por que, acho que não
teríamos coragem de chegar um no outro e mandar a real. É nossa vida foi uma
espécie de "equação exponencial", tudo muito exato, como se a vida
calculasse milimetricamente tudo que acontecera entre nós. Costumavam nos
chamar de "casal de idosos", agente se cuidava tanto um do outro que
parecíamos dois velhinhos no fim da vida, vendo o resto do tempo passar na
varanda de casa. Mas era bonito, mais bonito ainda foi ter ganhado de presente
de aniversário de uma semana de namoro, um filhote de coelho branco, você já
sabia do que eu gostava em tão poucos dias.
Nossas saídas ao cinema, nossa era impressionante como você sempre cochilava
e quase nunca via o final do filme, e me perguntava depois como acabou e eu nem
me lembrava direito, quase não prestava atenção, com você ali do meu lado, não
tinha como me distrair com muita coisa. Bom mesmo era o refrigerante e a
pipoca, que eu aproveitava as sobras pra jogar no pessoal que sentava logo à
frente, tava tudo escuro mesmo, ninguém sabia quem era.
As idas a praia, ah, éramos doidos, escolhíamos o dia mais nublado para
irmos tomar banho de mar, a praia tava vazia e sem ninguém pra ver nossas
maluquices, pois tínhamos a mania de ficar pelados, subíamos nas pedras a
deixar que as ondas batessem e nos molhassem pouco a pouco. Sem contar nos
castelos que tentávamos construir, que mais parecia uma pirâmide do Egito, pois
não tínhamos o menor jeito pra fazer aquelas torres enorme. E depois de
"pronto", destruíamos rolando por cima daquele amontoado de areia
molhada, e jurávamos ali, perante aquele oceano tão imenso, que nosso amor
consumado até o fim dos tempos.
É tanto que hoje estou aqui, te pedindo pra não pegar na minha mão fria,
pois só quero que carregue consigo a sensação das minhas mãos quentes,
deslizando em cada parte do teu corpo enquanto fazíamos amor loucamente, e que
cada recordação que aflorei agora, sirva de consolo quando enfim, verás os meus
olhos, que tanto te admiravam, se fecharem para sempre, num sono eterno, onde
ninguém poderá acordar.
Mas lembre-se do que havia te dito antes, eu sempre estarei com você, e,
como sempre, é só chamar, que eu venho.
Milena M.